As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Sexuagésima Semana
Contatos Sociais de Primeiro Grau
Andei meio sumida de novo. Final de semestre nunca é fácil para professories, mas o real motivo foi que participei, de 6 a 12 de dezembro, de um evento de divulgação científica organizado pela pró-reitoria de cultura e extensão universitária da USP, no shopping da cidade em que moro. A proposta era passar esses dias, juntamente com as outras professoras envolvidas no projeto, mostrando que a ciência pode ser divertida e acessível. Cada uma ficou responsável por um estande numa grande tenda que montaram no estacionamento do shopping. Tinha de tudo, experimentos de química, experimentos de física, quebra-cabeças de matemática, compostagem, reciclagem e jogos de tabuleiro voltados para o ensino. Esse último era o meu. A nossa ideia era ter, ao longo desses dias, uma série de mesas, em que quem quisesse pudesse jogar e aprender um pouquinho de química. Em teoria, mais perfeito e tranquilo impossível, tirando apenas que, depois de quase dois anos sem basicamente nenhum contato com desconhecides, teria que lidar diretamente com o público e com todos os seus preconceitos.
O isolamento social não apenas me privou do contato direto com pessoas, mas, sobretudo, poupou-me de ter que lidar diariamente com o fato de ser trans. Não que eu tenha deixado de ser trans. Ainda bem! Porém, deixei de ser lembrada das formas mais inconvenientes e perversas possíveis possíveis de que não sou cis. Foram quase dois anos sem receio algum de usar o banheiro. De não ter que me preocupar com a minha passabilidade e de não ter medo de ser clocada e possivelmente agredida. De não ter que lidar com as mais diversas formas de assédio. Foram quase dois anos de segurança e tranquilidade, no conforto da minha casa. Claro que eu senti falta do contato com pessoas, mas com pessoas que eu escolheria ter contato, minhes amigues.
Não vou negar que estava muito ansiosa e um tanto quanto preocupada com essa imersão nas interações sociais presenciais. Há semanas era um assunto recorrente na minha terapia. Afinal, além da questão trans, eu nunca fui uma pessoa muito sociável. Uma questão antiga, que a transição me ajudou muito a lidar, porém a sensação era de que a pandemia havia acabado com todo o meu progresso. Para a surpresa de ninguém, nos primeiros dias, eu mal conseguia fazer contato visual. Eu estava completamente travada. Sentia os olhos de todes ao meu redor fixados em mim. Cada movimento meticulosamente analisado. Minha virilha milimetricamente verificada. Todo o cuidado com a voz era pouco. Falava baixo e o mais suave que conseguia. Por sorte, não estava sozinha no estande. Além da minha esposa, dues alunes do Mamutes na Ciência estavam trabalhando como monitories. De forma que, a mim cabia na maioria das vezes apenas supervisionar as atividades.
Quem lê esse último parágrafo e não me conhece pode até achar que tenho vergonha de ser trans, dada a aparente obsessão com a passabilidade. Muito pelo contrário, eu me orgulho demais de quem eu sou e de onde consegui chegar. Entretanto, tudo o que eu não quero é ser tratada diferentemente por ser trans. Ser vista como uma aberração, assediada, humilhada, agredida e ainda ter que ouvir que respeitamos e amamos pessoas como você. Toda essa alteridade me machuca muito. Basta ser tratada uma vez em um milhão no masculino para que o meu dia acabe e eu me recolha em prantos.
Felizmente, ao longo de todos esses dias, não fui, sequer uma vez, chamada no masculino. Se me clocaram, tiveram, pelo menos, a decência de não usar essa informação para mudar a forma como me tratavam. No final das contas, é só isso o que eu quero. Mas claro que minha presença não passou despercebida. Num dos primeiros dias, um dos funcionários do suporte confidenciou com a minha esposa que tinha dificuldade em entender como eu poderia ser uma mulher, dado que eu estava casada com outra. De acordo com ela, ele não foi, em nenhum momento, desrespeitoso ou agressivo, só estava genuinamente encucado com essa quebra do paradigma cisheteronormativo que lhe foi imposta.
Num outro dia, a filha de um outro funcionário, que devia ter uns seis ou sete anos, passou o dia com a gente. Ela era muito fofinha. Super curiosa. Queria fazer todos os quebra-cabeças, ver todos os experimentos. Como a tarde estava tranquila, nesse dia não tivemos muitas visitas à tenda, passei umas boas horas com ela. Exercitei bastante o meu lado materno. Foi muito gostoso. Depois de algum tempo, ela me perguntou, na maior inocência, se eu era menina ou menino. Eu dei um pouco de corda, perguntando o porquê da dúvida. Ela disse que eu parecia uma menina, mas que tinha voz de menino. Para não causar muito e não ter que explicar coisas que não estava no pique, simplesmente, respondi que eu era uma menina com voz grave. Ela me olhou de cima embaixo, soltou um suspiro de alívio ao entender a situação e seguiu como se nada tivesse acontecido. No final da tarde, antes de ir embora, veio correndo me dar um abraço apertado. Crianças são maravilhosas. Entendem com muita facilidade coisas que os adultos se recusam a aceitar.