As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Trigésima Semana
Vergonha
Vergonha, e não ódio, sempre foi o melhor sentimento para descrever a minha relação com o meu corpo. Não posso negar, contudo, já o odiei por diversas vezes ao longo da minha vida. Mas que mulher, trans ou cis, não passou por isso? Não é o que nos ensinam? Que nossos corpos são imperfeitos? Que estamos sempre acima do peso? Claro, não dá para comparar diretamente a experiência cis à trans, nem ouso fazer isso, por desconhecer a primeira. Entretanto, o ódio permeia ambas. Culpa de um patriarcado nojento que incessantemente policia nossos corpos.
Certamente, posso responsabilizar o patriarcado e os pudores que ele incute sobre corpos femininos por parte dessa vergonha incomensurável que me acompanha. E não me venha com essa história de que isso não poderia ter acontecido comigo por ter sido socializada como um menino. A socialização é um processo muito mais complexo e, embora, ninguém tenha dirigido diretamente essas mensagens a mim, elas chegaram. Mesmo antes da puberdade arrasar com o meu corpo, a vergonha já se fazia muito presente.
Não conseguia ficar sem camiseta em público, sequer era capaz de usar confortavelmente uma regata. Quantas vezes não ouvi de meus pais, em dias quentes, para que tirasse a camiseta para ficar mais confortável. Não conseguia. Até para ir à praia ou à piscina era complicado. E que criança, ainda mais uma que cresceu longe do litoral, não gosta de água? Na maioria das vezes, estava de camiseta. Mas não era confortável. Resultado, aos poucos fui deixando de frequentar esses ambientes, mesmo tendo morado por grande parte da minha vida em um condomínio que tinha piscina. E claro, justificava para mim mesma que era porque eu não gostava de piscina ou praia. Sempre fui muito competente em mentir para mim mesma.
Com a chegada da puberdade, as coisas só pioraram. Não só deixei de fazer coisas que gostava, como comecei efetivamente a esconder o meu corpo debaixo de roupas largas. Muito largas, sempre uns dois ou três números maiores. Era o típico moleque desleixado com a bermuda no meio da canela, a camiseta preta de banda que ia até o meio da coxa, de cara espinhenta e rosto escondido pela aba do boné. Detalhe importante, eu nunca gostei de usar boné, porém ele permitia que ocultasse, mesmo que momentaneamente, a minha cara. Ninguém podia me ver, muito menos eu mesma.
E essa vergonha era tão intrínseca que não me dava conta das coisas que fazia em seu nome. Dúvido que tenha sido apenas uma coincidência, eu ter começado a usar roupas masculinas mais justas e modeladas, e o desejo por transicionar ter ficado insuportável. Não que essa vergonha com meu corpo tenha magicamente sumido com a transição. Ela ainda está lá, principalmente com respeito à minha genitália. Contudo, sinto-me agora perfeitamente confortável em ficar sem camiseta, pelo menos em casa, já que o patriarcado ainda afirma que peitos são imorais. Mas travemos uma batalha de cada vez. Ainda tem muita vergonha entranhada em meu corpo para lidar.