As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Trigésima Terceira Semana
Maquiagem
Maquiagem, do francês maquillage, consiste no ato de aplicar produtos com efeito cosmético, de embelezamento, ou disfarce, seguindo-se, em alguns casos, os ditames da moda e com uso de substâncias especificamente destinadas a tal fim. Antes fosse só isso. A definição do dicionário é seca. Precisa. Totalmente destituída de sentimentos ou qualquer profundidade. Técnicas, com treino aprendemos. Porém, nenhuma definição consegue capturar as sutilezas da vida real, ainda mais quando temos todo um histórico de traumas, desejos e frustrações.
Jurava, no começo da minha transição, que me tornaria a louca da maquiagem. Foi um mundo que sempre me fascinou. O poder da feminilidade em seu zênite. Tudo personificado no estojo vermelho da minha mãe. A aura que ela emanava conforme o utilizava era inebriante. Um sonho inalcançável. Um desejo proibido. Restava-me apenas observar à distância, num eterno jogo de espera e de lágrimas não choradas.
Contudo, no dia em que esse mundo se tornou acessível, era eu que não conseguia. Por mais que quisesse. Por mais que me esforçasse. Simplesmente não fluia. Achava que era um entrave técnico. Afinal, estava três décadas atrasada. Juntava-se a isso a minha incapacidade de aprender qualquer coisa com tutoriais daquela rede social de vídeos. Talvez não fosse para mim. Talvez precisasse fazer algum curso de automaquiagem. Mas, mesmo quando minha esposa se voluntariava a me ensinar, era estranho. Faltava alguma coisa. Nunca achava que o resultado estava bom o suficiente. A eterna sensação de incapacidade. Só não tinha falhado miseravelmente, porque ela estava ali me guiando no processo e fazendo o papel da minha mão, quando ela não era firme o suficiente. Fato, era muito a aprender: uma pletora de pincéis, todos indistinguíveis, uma variedade de produtos e uma infinidade de possibilidades. Sempre acabava frustrada!
Resultado, entre uma tentativa e a próxima se passava pelo menos um mês. O tempo que precisava para me recuperar da frustração. Não tem como aprender nada com essa infrequência. Tudo o que havia assimilado da vez anterior estava perdido nas brumas da memória. Um eterno recomeço. Um sofrimento sem fim. Será que algum dia seria capaz de fazer a minha própria maquiagem sozinha?
Precisava começar a ousar mais. Mas, e a preguiça para me maquiar para ficar em casa? Nessa última quarta, uma rara oportunidade nesses dias de isolamento social surgiu. Era o dia de encerramento do Pint of Science. Uma boa desculpa para me maquiar. Para melhorar, havia acabado de chegar uma paleta de sombras nova e estava doida para experimentar. Tomei banho. Preparei a pele. Passei corretivo nas olheiras e nas marcas de acne da adolescência errada. Um pouquinho de base. Um pouquinho de pó e vamos para o olho, o meu maior terror. Passo uma sombra mais escura para dar profundidade e sobre ela, uma mais brilhante da palheta nova. Esfumo um pouco. Com o dedo mesmo, porque nunca sei qual desses pincéis usar. São todos iguais. Pego o lápis e tento fazer um delineado. A ponta quebra. Grito, raiva e frustração! Ainda mais porque saiu do contorno do olho. Talvez dê para arrumar fazendo um gatinho. Parece que funcionou. Bora para a boca. A parte que domino melhor. Alívio. Escolho um batom líquido e pronto, maquiagem terminada. Acho que ficou bom. Mostro para a esposa e ela, já toda concentrada na live que estava prestes a começar, fala que ficou ok. Corro para a frente do computador. Ligo a câmera e me deparo com a monstruosidade que fiquei.
Todo esse esforço para nada! Seguro as lágrimas. Já estava ruim sem borrar. Por sorte, só vou aparecer na live ao final. Posso desligar a câmera e tentar me recompor. Talvez tenha apenas olhado por um ângulo ruim. Ligo a câmera do celular e tento tirar algumas fotos, vai que? Contudo, a frustração só aumenta. Conter as lágrimas está cada vez mais difícil. Nenhuma foto que tirei ficou boa. Mas posto uma mesmo assim. A eterna busca por validação. A frustração, agora com toques de raiva e aversão a mim mesma, assume o controle. Sou horrorosa. Não sei e nunca saberei me maquiar. Odeio minha mãe! Por que ela não me ensinou a me maquiar quando era criança? Por que sempre me repreenderam? Não tem mais como segurar, as lágrimas começam a transbordar!
Em meio a tanta dor, um pequeno alumbramento. Talvez não seja uma incapacidade técnica que tenho em me maquiar, mas sim uma trava psicológica, resultado de todos esses anos na clausura do armário. Frustrações, negações e todos os traumas que passei aflorando numa tempestade impossível. A imagem da minha mãe com seu estojo vermelho a me aterrorizar. Será que um dia serei tão feminina quanto ela? Será que um dia serei reconhecida como mulher por ela? A maquiagem é apenas uma metáfora para todos esses sentimentos.
Infelizmente, não podemos voltar no tempo para reparar esses erros. Ainda mais erros que nem meus foram. Também não adianta tentar compensar o tempo perdido. Ele já foi. Resta chorar, encontrar forças para me recompor e seguir em frente. Mais um passo nesta jornada de autodescoberta e autoaceitação. Ninguém disse que seria fácil. Mas como costumo falar para minhes alunes, quanto maior o desafio, maior o XP. Sigamos, porque o tempo não pára.