As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Vigésima Terceira Semana
Gênero: um Olhar Travesti
Nesse último 8 de março fui convidada para participar do evento Mulheres na Ciência — Destaques 2020 organizado pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo. Compartilho a seguir a minha fala durante a mesa Gênero: um Olhar Feminino.
Boa noite a todes!
Queria, inicialmente, parabenizar todes es organizadories em nome da Professora Ana Paula Magalhães pela organização deste evento tão bonito e diverso!
É tanto uma grande honra dividir esta mesa com mulheres tão fortes e inspiradoras, quanto uma imensa responsabilidade. Jamais imaginaria ver uma travesti sendo convidada para contribuir com o seu olhar feminino sobre gênero em um evento celebrando o dia internacional da mulher, quanto mais que eu fosse tal travesti. É uma luta antiga do movimento transfeminista a nossa inclusão e aceitação nestes espaços.
Os famigerados espaços ditos exclusivamente femininos, como banheiros, vestiários e eventos feministas, têm sido locais de um acirrado embate sobre quem pode se autoproclamar mulher. Ainda hoje, somos duramente acusadas de os estarmos invadindo e, por conseguinte, maculando o desejo de meninas e mulheres por um ambiente seguro, separado daqueles que nasceram “biologicamente” machos e foram criados como homens. Somos frequentemente expulsas, quando não agredidas e humilhadas, apenas por desejarmos existir com um mínimo de dignidade. Direitos tidos como tão básicos e universais, como o uso de banheiros, que, por sua obviedade, muitas vezes nem são percebidos, são sumariamente negados.
Você, pessoa cis que me ouve, já deixou de usar um banheiro por temer por sua integridade física e psicológica?
Ao incluir pessoas transfemininas em eventos feministas, a USP dá um claro recado de que não apenas nos enxerga como as mulheres que nos autodenominamos, como de que atitudes transexcludentes não serão toleradas! É uma mensagem de esperança para vidas tão marcadas por incertezas, medos e violências.
Essa violência começa quando nascemos. Ume médique olha para a nossa genitália e dita o nosso destino. Não há escapatória, a presença ou ausência de um pênis ainda determina as expectativas da sociedade sobre nossas vidas: que roupas vamos usar, que brinquedos vamos ganhar, que empregos podemos aspirar. A cisheteronormatividade nos é enfiada goela abaixo desde a primeira infância. E ai de você que se mostre divergente. O cistema, com c de cisnormatividade, reage desproporcionalmente, toda dissidência deve ser eliminada. E quanto antes melhor. Para que não cresça e mostre o quão falhas e cheias de rachaduras são suas fundações.
Daí surge a incerteza e a confusão. Por que eu não posso ter meu cabelo longo? Por que eu não posso furar as orelhas como as outras meninas? Porque você não é uma menina, você é um menino. E os meninos têm todo um rígido código de conduta a seguir: a começar por não poder chorar. Engula essas lágrimas, filho meu não chora! Resultado, passei a infância inteira sem saber o que eu era. Sabia que não era um menino, mas também me era negado ser menina.
Foi apenas com dez anos, em meados da década de 1990, que descobri que existiam pessoas como eu. Assistia com meus pais a uma reportagem do façanhoso programa dominical de uma certa rede de televisão que abordava a vida das transexuais e das travestis. As primeiras eram vistas como mulheres que nasceram em corpos errados, mas que, por intermédio de procedimentos médicos caros e praticamente indisponíveis, readequaram seus corpos a ponto de se miscisgenar. Apesar do tom objetificante e patologizante recheado de uma transmisoginia nem tão velada, como epitomizada na máxima “A mulher mais bonita do Brasil é um homem” endereçada à Roberta Close cerca de uma década antes, enchi-me de esperanças. Não só não estava sozinha, como existia uma cura para o desconforto que sentia. Mas tão rápido quanto surgiu, esvaiu-se a minha felicidade, pois a reportagem seguiu falando do destino reservado à grande maioria dessas pessoas: a rua, a marginalidade, a prostituição e, enfim, a morte. Para piorar, meus pais, um reflexo de nossa sociedade cisheteronormativa, ecoavam todos os comentários transfóbicos do repórter.
Estava claro que não poderia revelar minhas angústias existenciais, sob o risco de ser expulsa de casa. O preço de ser eu mesma era demasiadamente alto. E mesmo que tudo desse miraculosamente certo e eu fosse aceita, o que me garantiria que eu teria o futuro que almejava? Eu não queria ser modelo, cabeleireira, manicure, quanto mais prostituta. Queria fazer ciência! Mas que exemplos eu tinha para me inspirar?
Se hoje, depois de mais de 3 décadas de muito progresso em como somos vistas e aceitas pela sociedade, apenas 6% da população transfeminina brasileira se encontra inserida no mercado formal de trabalho, em contraste com os 90% que ainda utiliza a prostituição como fonte primária de renda, imagina como era a situação em meados da década de 1990. Essa situação aterradora é um reflexo direto do processo de exclusão escolar que começa, em muitos dos casos, com a menina trans sendo expulsa de casa pelos pais com uma idade média estimada em 13 anos. Resultado: 56% das mulheres trans não possuem o ensino fundamental completo, 72% não possuem o ensino médio completo e apenas 0,02% estão na universidade.
A saída era sobreviver até conquistar alguma independência para poder ser eu mesma. Na minha ingenuidade, acreditei que esse momento viria quando entrasse na faculdade. Contudo, a USP do início dos anos 2000 não era um ambiente acolhedor à diversidade. Não esperava encontrar alguma professora trans. Mas talvez uma colega, ou quem sabe ações afirmativas institucionais ou pelo menos por parte do corpo discente em apoio a pessoas LGBTQIA+? Também, não. De fato, muito pelo contrário. Deparei-me com muita transhomofobia por parte tanto do corpo docente quanto discente. Desde piadinhas sem graça e comentários transmisóginos sobre as travestis que se prostituíam na avenida do jóquei, até presenciar um amigo sofrer ataques homofóbicos por parte de uma professora.
Definitivamente a graduação não era o momento adequado para transicionar. Talvez as coisas melhorassem quando ingressasse na pós-graduação? Ledo engano. Durante o pós doc, então, nem pensar. Se mulheres cis já são preteridas em concursos públicos, quem contrataria uma travesti como professora universitária? Para alguém que já tinha esperado quase duas décadas para poder existir, o que seriam mais alguns anos até conseguir a estabilidade de um emprego em uma universidade pública? Contudo, quando assumi minha posição na Escola de Engenharia de Lorena em 2014, percebi que teria que permanecer na segurança enlouquecedora do armário por mais 6 anos. Maldito período probatório.
Só que dessa vez, a disforia falou mais alto. Depois de uma tentativa frustrada de suicídio em 2018, estava claro que não aguentaria mais essa clausura. Era transição ou morte! Comecei minha hormonização, sob orientação médica, que fique claro, na surdina. Morria de medo de que descobrissem e me denunciassem, ainda mais com toda a escalada do discurso de ódio que começou ao longo desse fatídico ano. Para piorar, ouvira de um colega, que estava em outra unidade da USP, que um menino trans tinha sido forçado pelo coletivo feminista local a destransicionar e nada do instituto tomar alguma providência para coibir e punir atitudes transfóbicas.
Precisava encontrar alguma forma de me proteger. Precisava descobrir como navegar a burocracia para fazer a minha transição social no âmbito universitário, para enfim poder ser eu mesma publicamente. Por um desses acasos fortuitos da vida, esbarrei no programa USP Diversidade da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária. Em sua página, havia instruções desatualizadas de como alunes poderiam solicitar o uso do nome social institucionalmente, porém nenhuma menção era feita sobre como docentes e funcionáries deveriam proceder. Mas tinha um e-mail de contato, sem pensar duas vezes, enviei uma mensagem pedindo informações mais detalhadas.
Quinze intermináveis dias depois, recebi uma mensagem do programa falando que eles ainda estavam esperando uma resposta da Reitoria. Ansiedade. Passaram-se ainda mais cinco dias para o programa me retornar com o procedimento. De acordo com o Departamento de Recursos Humanos da Reitoria, casos semelhantes já haviam sido tratados, mas inexistia um protocolo no manual de normas e diretrizes. A demora na resposta se devia exatamente à criação desse procedimento. Ele aparentava ser enganosamente simples demais:
- Contate a chefia imediata e a notifique sobre a sua intenção em transicionar;
- A chefia imediata deveria marcar uma reunião privada comigo para iniciar os procedimentos de acolhimento e, mantendo a discrição necessária, comunicar à direção da unidade;
- A direção deveria por sua vez garantir o acolhimento no âmbito da unidade;
- O setor de recursos humanos deveria ser notificado e a alteração no sistema Marte, efetuada.
Para a minha surpresa, esse processo transcorreu com muita facilidade e, uma semana depois da reunião com a minha então chefe, no augurioso dia 29 de janeiro de 2019, meu nome e marcador de gênero estavam corretos no sistema Marte. Pena, que a comunicação com o sistema Júpiter não tenha sido tão eficiente e meu nome morto continuou a ser exibido por pelo menos mais um semestre.
Chegava, enfim, a hora de me apresentar ao mundo. Não tinha mais por que esperar, e no mesmo dia da retificação, fiz um pequeno post num grupo fechado de uma rede social voltado para o público LGBTQIA+. Sabia que algumes alunes da faculdade participavam desse grupo e certamente a notícia iria se espalhar. Só não contava com a rapidez. Não demorou muito para a minha caixa de mensagens ficar repleta de mensagens de apoio, aceitação e admiração. Parte dos meus temores começava a se dissipar: não teria grandes problemas com o corpo discente. Salvo um incidente em uma avaliação de disciplinas em que ume alune teceu diversos comentários transfóbicos, a impressão que tive é que es alunes simplesmente viraram a página e completamente esqueceram do nome morto. Infelizmente, não sei que providências a comissão responsável pela avaliação das disciplinas tomou com respeito a esse caso de transfobia.
Quanto aos demais docentes, a minha chefe tinha se prontificado a aproveitar o período de férias escolares para começar a espalhar adiabaticamente a notícia. Mas mesmo assim, em uma reunião departamental, em que aproveitei os minutos finais para me apresentar, um professor não se conteve e precisou destilar toda a sua transmisoginia. Fiquei completamente atônita e antes que pudesse me recompor e responder a altura, es demais colegas presentes começaram a rechaçá-lo. Foi a vez do transfóbico ficar sem palavras e ter que se desculpar a contragosto. Nunca mais me dirigiu a palavra. De fato, ele e mais algumes outres docentes me evitam a todo custo, a ponto de desviarem suas trajetórias para não dividirmos o mesmo corredor. Talvez acreditem que esteja doente e seja transmissível pelo ar.
E com isso voltamos à questão dos espaços exclusivamente femininos. A começar pelos banheiros, não nego que nos primeiros dias como eu mesma, por medo de represálias, não os utilizei. Voltava para casa no horário do almoço, vantagens de morar em uma cidade do interior, para poder aliviar minhas necessidades fisiológicas. Não era prático. Não era, sobretudo, saudável. Alguns dias depois, criei coragem e arrisquei utilizar o sanitário feminino do prédio em que fica a minha sala. Para minha grata surpresa fui prontamente incluída na conversa que estava rolando. Outro momento crucial foi no meu primeiro 8 de março fora do armário. O coletivo feminista Enedina Alves Marques organizara uma roda de conversa no vão do bandeijão. Queria muito participar, mas estava receosa. Mas bastou eu me aproximar da roda, para as meninas correrem para me acolher. Desde então tenho sido bem-vinda e até convidada para participar de diversos eventos voltados para o público feminino e LGBTQIA+.
Falando assim pode até parecer que meu caso seja um sucesso absoluto ou que a vida de pessoas trans na universidade seja fácil. Primeiro, eu tive muitas perdas: amigos, família e diversas oportunidades profissionais. Só não acho que elas sobrepujam o fato de eu poder ser eu mesma e continuar fazendo o que amo! Em segundo lugar, o meu caso é deveras particular e está muito longe de ser um exemplo representativo. Tenho muitos privilégios que me protegem, a começar por ser branca e por ter conquistado uma posição de poder. Essa última, a duras penas, custou a minha juventude. Como eu gostaria de ter podido transicionar antes de ter passado pela adolescência errada e, com isso, ter aproveitado a vida como eu mesma! Mas sei que dificilmente estaria aqui, quanto mais viva.
Não quero que outras pessoas trans tenham que passar pelo mesmo processo de despersonalização e desumanização que eu tive que encarar para poder sobreviver. Para isso não basta respeitarmos o uso do nome social, dos pronomes corretos ou dos banheiros. Precisamos ir além. Precisamos criar um espaço acolhedor onde gêneros trans não sejam mais vistos como inferiores. Precisamos criar políticas de inclusão, como cotas educacionais e mecanismos de permanência universitária, que comecem a mitigar os séculos de ostracismo social, educacional e afetuoso impostos pelo ditatorial regime cissexista.