As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Décima Semana
Saias e Brincos Para Começar Bem o Ano
Essa foi uma semana repleta de pequenas mas extremamente importantes realizações pessoais e algumas constatações profundas. De mudanças físicas, antes que me perguntem, nada que não seja a progressão esperada por continuidade do que vem acontecendo comigo. Sobretudo os peitos continuam com seu crescimento e consequentemente com suas dores, mas nada que não remeta ao reconforto de que o tratamento está realmente funcionando. Daqui a duas semana devem chegar os resultados dos meus primeiros exames, se curiosidade matasse…
Nunca dei muita bola para o ano novo. De fato, sempre achei uma festa extremamente sem graça. Afinal, o fim de um ano e o começo do subsequente não passa da escolha de um ponto arbitrário numa elipse. Se ainda coincidisse com algum solstício ou equinócio, mas nem isso. Contudo, o desse ano foi significativamente especial. Não que já não estivesse usando predominantemente roupas femininas e brincando com maquiagem pelas últimas duas semanas, mas no ano novo seria a minha primeira vez de usar um vestido e fazer uma maquiagem completa. Infelizmente, as coisas não saíram exatamente como o planejado. Estava quente demais para usar o vestido que eu comprara e meus olhos estavam demasiadamente irritados para colocar qualquer tipo de maquiagem próxima a eles. Felizmente, minha esposa tinha uma saia super fofa com estampa de caverinhas para me emprestar e pelo menos deu para cobrir adequadamente a sombra da barba com corretivo e base e passar um batom. Não era o que eu tinha imaginado, mas o suficiente para me sentir super fofa.
Sair de casa esbanjando minha feminilidade: saia, blusinha, Melissa, maquiagem e cabelo arrumado foi um tanto quanto aterrorizante. E se eu encontrasse com algum vizinho ao longo da quadra que tinha que andar para chegar no lugar da festa? O que eles iriam pensar? Será que me reconheceriam? Peguei todas essas inseguranças e as mandei para o lugar de onde elas nunca deveriam ter saído e fui. Simplesmente, desci as escadas e andei o quarteirão. Não encontrei com ninguém nessa jornada. A festa com outros dois casais além da minha esposa e eu foi maravilhosa. Uma comilança que durou mais dois dias. Música boa e bebida! Não poderia ter começado esse ano tão crítico de uma forma melhor.
O meu maior receio, contudo, para essa semana era voltar ao trabalho na quarta-feira. O problema não é o trabalho em si, pois adoro o que faço, mas sim ter que voltar a vestir a minha máscara social masculina. Essas duas semanas que passei explorando minha feminilidade em tempo integral foram surpreendentemente leves e divertidas e, por isso, temia a crise de disforia que ter que me referir no masculino novamente poderia disparar. Não sei ao certo o que mudou em mim, mas por algum motivo, essa crise não veio. Apenas uma certa estranheza em usar nomes e pronomes masculinos. Talvez seja essa nova segurança que conquistei, essa certeza de que lá no fundo sou uma mulher e não são os nomes, pronomes ou as roupas que uso que me definem. Tenho certeza que mesmo debaixo da máscara minha feminilidade brilhava mais do que nunca. Talvez seja a certeza de que estou em um estado transiente, e que em breve poderei ser eu mesma. Afinal, na própria quarta, entrei em contato com o diretório de diversidade da firma para saber em mais detalhes como proceder com a minha transição social.
Quinta foi dia de realizar um sonho de infância: furar minhas orelhas. Devia ter uns seis ou sete anos quando minha vó (a mesma da brincadeira do sutiã improvisado) furou as dela. Acho que até então nunca tinha realmente reparado em brincos, mas foi fascinação instantânea. Uma necessidade premente e inexplicável. Entretanto, devido a comentários dos meus pais de que garotos, ou de uma forma menos implícita: eu, não poderem usar brincos, nunca tive coragem de pedir que furassem as minhas. Talvez, para desestimular esse meu desejo, fizeram questão que eu acompanhasse o procedimento, que julgavam extremamente doloroso, em minha vó. Quando contei para minha mãe que havia finalmente furado as orelhas, seu primeiro comentário foi que já imaginava que esse seria o meu próximo passo. Acho que a ficha de que sempre fui uma garota está finalmente caindo para ela. Antes de mudar de assunto, peço que se decidirem furar as orelhas, ou qualquer outra parte do corpo, procurem por profissionais especializados e respeitados em estúdios de tatuagem ou perfuração (piercing) e evitem as famigeradas pistolas de farmácia a todo custo.
Para fechar bem essa semana além de ter feito a minha segunda sessão de depilação a laser na barba aconteceram duas coisas bem reconfortantes. A primeira foi na fila do quilo que almocei antes de ir para a depilação. Como estava com a barba por fazer (eca!), nem me preocupei com que roupa estava usando naquele dia. Mesmo assim, ouvi um “com licença, moça”, quando um dos funcionários precisou que eu abrisse espaço para que ele reabastecesse alguma das comidas. A segunda foi ouvir de um casal de amigos que vieram nos visitar essa semana a reação de suas mães ao saberem que estava transicionando. Eles mostraram uma foto minha mais recente e elas comentaram que eu iria deixar de ser um homem feio para me tornar uma mulher linda.