As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Nonagésima Primeira Semana
Perspectivas
Transitar entre os gêneros em uma sociedade ainda inerentemente binarista propicia uma oportunidade ímpar de vivenciar as duas perspectivas que a moldam. Talvez, seja esse um dos aspectos mais profundos e menos discutidos da experiência trans, notadamente, daquelas pessoas que transicionam mais tarde na vida. Essa visão mais ampla dos privilégios e opressões baseados única e exclusivamente em uma pseudo bijeção entre genitália e gênero, assim como toda uma construção social calcada na prevalência do falo, tornou-me uma pessoa muito mais humilde e empática.
A socialização masculina é brutal. Ela poda toda a nossa sensibilidade, enquanto cultiva o que há de mais duro em nós. Temos que ser rígidos e agressivos, pois só assim poderemos manter a opressão que justifica o nosso poder. Temos que nos impor a todo custo e jamais mostrar qualquer sinal de fragilidade. Isso molda a nossa relação com o mundo em todos os seus aspectos: desde como nos enxergamos até como nos relacionamos com outros homens e como tratamos as mulheres. Há todo um protocolo. E para passar despercebida nesse mundo atroz da masculinidade frágil por todos esses anos tive que me adequar a muito contragosto. Fiz muitas coisas das quais não me orgulho nem um pouco. De fato, muito me arrependo.
O relacionamento entre homens é o de uma irmandade vazia. Irmandade, porque você nunca verá um homem deixando de defender, ou de pelo menos fazer vista grossa, para qualquer atrocidade cometida por outro macho, em particular, quando admitir essa atrocidade pode revelar sua fragilidade ou empoderar alguma mulher. Lembro-me de uma certa vez que alguns conhecidos relatavam suas façanhas taradísticas em alguma viagem ao exterior e eu, apesar do asco, não conseguia me opor a tais barbaridades, como tirar fotos das calcinhas das meninas que usavam saias extremamente curtas. Na visão deles, elas, por estarem usando roupas insinuantes, estavam convidando esse comportamento animalístico.
Por outro lado, a despeito de um proteger avidamente o outro das críticas alheias, a intimidade masculina é despida de qualquer envolvimento emocional. Sentimentos, medos e inseguranças nunca são discutidos. Claro, ninguém quer revelar suas fragilidades e arriscar perder pontos na importantíssima competição pela posição de alfa do grupo. Conversas sobre sexo, apenas para relatar suas façanhas ou depreciar as putas que não lhe proporcionaram o prazer procurado.
Não à toa, sentia-me completamente ostracizada em ambientes puramente masculinos, em particular, quando não havia nenhum interesse comum como ciência, música, artes marciais ou RPGs. Isso era extremamente evidente nos churrascos das amigas da esposa que ia como acompanhante. Por mais que tentasse ficar com os esposos, não havia conexão. Todas as conversas tratavam sobre alguma combinação dos temas: futebol, cerveja, churrasco ou como a esposa não os satisfazia ou como alguma mina era gostosa para caralho. Resultado, não dava nem meia hora e já estava tagarelando com as mulheres.
Em contraponto está o relacionamento entre mulheres. Nós não costumamos nos defender publicamente. Infelizmente, é comum ouvir mulheres reproduzindo misoginia ou justificando agressões como estupro ou assédio com argumentos tradicionalmente sexistas como os mesmos empregados pelos meus “amigos” para se eximirem da responsabilidade por seus atos. Afinal, elas queriam. Por outro lado, nossas conversas são muito mais profundas e filosóficas. Confidenciamos nossos sentimentos, medos e inseguranças livremente e somos devidamente abraçadas e amparadas em retorno. Há todo um carinho e cuidado nessa intimidade feminina.
Talvez, o banheiro exemplifique essa dicotomia entre o comportamento dito masculino e feminino da forma mais explícita. Enquanto, para os homens o banheiro parece uma câmara de tortura onde suas fragilidades estão evidenciadas, para as mulheres é um refúgio onde podem se abrir sem medo de serem julgadas. Não à toa, os homens entram e saem o mais rápido possível, evitando ao máximo olhar para o lado. A regra implícita de não poder ocupar dois mictórios adjacentes revela todo esse receio. Será que olhar para o pênis de outro homem torna alguém gay? Ou será que é apenas o medo de saber que alguém pode ter um falo maior? Do outro lado, está o banheiro feminino, quase nunca frequentado em solidão. É uma experiência para ser compartilhada. Quando nos despimos da pesada fachada que precisamos impor para sermos minimamente respeitadas e ouvidas por homens que insistem em estarem certos sobre absolutamente tudo.
Simultaneamente, a percepção que os outros têm de nós também impacta significativamente a nossa relação com o mundo. Se por um lado, ao transicionar senti um acolhimento quase imediato das mulheres à minha volta, que passaram a me tratar como uma igual. Toda uma nova intimidade a explorar. Enfim, livre para elogiar e abraçar as minhas amigas sem o medo de ser julgada como tarada. Livre para me posicionar sem o medo de ser julgada como o macho palestrinha ou de ter a minha passabilidade masculina questionada.
Por outro lado, senti um distanciamento dos homens que já conhecia e tinha até uma certa intimidade pré-transição. Não que eles tenham passado a me objetificar como fazem aqueles que me conheceram pós-transição com seus olhares inquisitores, que medem cuidadosamente as minhas curvas e certamente se perguntam o que eu tenho entre as pernas. Mas surgiu um certo desconforto sempre que estou no grupo. Talvez seja o medo de falarem alguma bobagem e me ofenderem. Talvez seja por ainda não terem processado completamente a minha transição. Talvez seja assim que eles tratam as mulheres que respeitam.
Certamente, trata-se de um processo inacabado, e provavelmente algumas perspectivas mudem conforme avanço na minha transição. Notadamente, porque percebo, principalmente no ambiente profissional, que parte do meu privilégio masculino sobreviveu. Não me sinto mais questionada ou subestimada por ser mulher. Não ouço, pelo menos nesse contexto, machos palestrinhas tentando me ensinar a fazer o meu trabalho. Não sei quão perene esse privilégio será, ou quanto atrelado a memória do nome morto está. Será que conforme as pessoas esqueçam que um dia eu passei por homem, esse privilégio desaparecerá? Não sei o que o futuro me reserva, mas abraço a mudança que me aguarda como uma oportunidade de me entender cada vez mais.