As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Nonagésima Segunda Semana
Mémorias inesperadas
Nossa memória nos prega peças. Esquecemos coisas que julgamos importantes, distorcemos outras e guardamos muitas que parecem totalmente inúteis. Isso quando do nada algum cheiro, alguma música ou algum fio de pensamento despretensioso não desperta uma que parecia perdida nas mais obscuras brumas do tempo, só para que percebamos quão fundamental algum evento foi. Talvez no momento em que ocorreu não tenhamos dado a devida importância e, por isso, o choque com a pletora de lágrimas muitas vezes despertada no processo. Certamente, a terapia tem tornado esses momentos bem mais frequentes e proveitosos na minha vida. Tenho podido revisitar alguns traumas e perceber como algumas coisas que pareciam irrelevantes no momento me moldaram profundamente. Só nessa semana que se passou, foram dois desses pequenos alumbramentos.
A primeira lembrança surgiu devagarzinho, enquanto divagava sobre a minha infância e me perguntava quão diferente teria sido a minha relação com a disforia e minha feminilidade latente, se tivesse além dos meus dois irmãos, uma irmã. Nisso, como um tiro, ecoou uma frase que minha mãe orgulhosamente repetia sempre que a oportunidade surgia: “ainda bem que só tive filhos, jamais saberia criar uma menina.” Acho que nesses momentos calejada pelo peso da máscara que a tanto custo vestia, não dei conscientemente a devida importância a tal a afirmação tão recorrente. Contudo, parece-me óbvio a relevância subconsciente dessa afirmação para a certeza que sempre tive de que não seria aceita pelos meus pais.
Felizmente, a ausência de irmãs biológicas não me impediu de explorar o que hoje julgo de infância feminina. As oportunidades não eram tão frequentes quanto gostaria, mas certamente foram aproveitadas. Seja brincando escondida com a Barbie que minha avó usava como molde para fazer as roupinhas de boneca que vendia na vizinhança. Seja quando viajávamos para Petrópolis e podia, mesmo que a contragosto dos meus pais, brincar com os antigos brinquedos da minha mãe: uma Susi e uma mini cozinha com fogão, pia e panelinhas de metal. Apesar de nunca terem explicitamente me proibido, a sensação de transgressão era inegável. Afinal, não faltavam comentários velados, principalmente do meu pai, denotando uma profunda preocupação com as possíveis consequências desastrosas de tais brincadeiras. Não que eles fossem diretamente endereçados a mim, mas não podia deixar de ouví-los. A vista grossa que faziam era perceptível. Imagino, por se tratar de momentos infrequentes o suficiente.
Já a segunda recordação apareceu sem ser convidada e me tomou com deveras violência. Fui dominada por um choro inconsolável ao ouvir os seguinte verso de turn the page:
“Most times you can’t hear ’em talk, other times you can
All the same old cliché’s, “is it woman, or is it man”
And you always seem outnumbered, you don’t dare make your stand”
Música que fez parte da minha adolescência em sua versão regravada pelo Metallica. Esse verso em particular sempre ressoou mais forte comigo, mas nunca tinha entendido bem o porquê. Agora me parece claro, descreve perfeitamente os olhares e comentários que minha presença travesti evoca aonde quer que eu vá. Talvez, a percepção de um medo que sempre tive e nunca fui capaz de verbalizar. Um destino de inexorável violência. À época apenas vivenciado como um misto de euforia e desconcerto que ser confundida com uma menina me despertava. Não que fossem frequentes tais episódios, mas não eram incomuns o suficiente para passarem completamente despercebidos. Em uma certa ocasião, acompanhada de meu pai, levei ainda uma bronca seguida de um “se você cortasse esse cabelo, não passaríamos por essas humilhações.”
E são de pequenos eventos como esses que nosso subconsciente tira todos os tijolos que precisa para a construção da muralha que um dia servirá de santuário. Ou melhor, prisão. Um peso que vai crescendo adiabaticamente e por isso somos incapazes de perceber até que chega o momento em que estamos completamente isoladas em nossa própria miséria. Sem perspectiva alguma de escapar, parece restar apenas o suicídio. Desmantelá-la é tarefa árdua e longa. Exige remover cuidadosamente cada um desses tijolos invisíveis que nos protegem do sofrimento à custa da nossa felicidade. Exige revisitar cada uma dessas situações e chorar as lágrimas que nos foram proibidas. Só assim para nos entendermos e nos aceitarmos.