As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Nonagésima Sexta Semana

Gabrielle Weber
6 min readSep 5, 2020

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Gênero, Ativismo e Igualdade — A minha participação na III Mostra Ecofalante USP e a Agenda 2030

Essa semana tive a honra de participar como debatedora, juntamente com a maravilhosa Zilda Iokoi, do webnário “Gênero, Ativismo e Igualdade” parte da III Mostra Ecofalante USP e a Agenda 2030. Discutimos sobre questões de gênero, sexualidade e debatemos formas com as quais podemos mitigar toda essa desigualdade baseadas nas nossas experiências e colocações de sete curta metragens. O (longo) texto de hoje é baseado nas minhas reflexões sobre alguns desses curtas.

Gostaria de começar a minha reflexão com uma citação do filme Nem Puta Nem Santa:

“Há para nós (travestis) uma linha muito tênue entre a paz e a violência, entre o amor e o ódio, entre cidadã e indigente.”

Para nós pessoas trans, a violência começa quando nascemos. Roubam-nos a nossa identidade apenas porque insistem em uma pseudobijeção entre gênero e genitália. Impõem-nos uma pesada e amarga máscara.

Temos que nos adequar para não apanhar. Se nasci com um pênis, é óbvio que sou homem. E por isso devo reproduzir toda uma série de comportamentos, a chamada masculinidade tóxica, que me impede de expressar meus sentimentos, minhas emoções. Chorar, dançar ou até mesmo andar e falar como gostaria me foi duramente proibido.

Como diria o pai do Garoto do Fim do Mundo:

“Do jeito que (o homem) tem que ser: normal.”

Mas o que seria essa normalidade? Claro que não pode ser sinônimo de naturalidade. Há na natureza humana as mais diversas expressões de masculinidade. Nem todas tóxicas. Talvez seja somente uma deturpação do comportamento médio do homem destilado durante séculos por uma necessidade mórbida de se impor superior à mulher. Homem, de acordo com essa métrica, tem que ser másculo, forte, viril, violento. Gostar de futebol é apenas mais um dos requisitos. É só falar que não gosta para ouvir uma variedade de impropérios: viado, menininha, bichola. Afinal, o futebol é a expressão máxima da masculinidade tóxica.

E quem é você para renegar a dádiva de ser homem que lhe foi dada ao nascer? Quem em sã consciência abriria mão de todos os privilégios para se dizer mulher? Afinal, como diria uma das entrevistadas do Entre Mães:

“A mulher é um pedaço de carne”

Ou para citar uma das falas do Beat É Protesto — O Funk pela Ótica Feminina:

“Se você for uma mulher, eles não vão levar o seu trampo a sério.”

Meras constatações das funestas consequências do sexismo oposicional e tradicional que sustentam o modo de viver ocidental.

E se você, como dizem, tem a coragem de se rebelar contra esse Cistema (com C maiúsculo de cisgeneridade compulsória) vai sofrer toda a ira de uma sociedade que teme ter as suas frágeis fundações destruídas por sua inocência em ser você mesma.

O ostracismo começa em casa. Treze anos é a idade média em que mulheres trans e travestis são expulsas de casa pelos pais. Salvo raras exceções em que encontramos acolhimento onde menos esperamos, nosso destino é a rua. Como estudar sem ter um teto a lhe proteger ou comida para matar-lhe a fome? Não à toa 56% não completou o ensino fundamental, 72% não completou o ensino médio e apenas 0,02% está nas universidades. A consequência direta disso é que 90% da população trans brasileira está na prostituição.

O Brasil é o melhor exemplo da tênue linha entre o amor e o ódio que nós mulheres trans e travestis somos forçadas a caminhar. O país que mais consome pornografia trans é o mesmo que mais mata travestis. De acordo com o dossiê da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), apenas no ano passado 124 pessoas trans foram brutalmente assassinadas. Certamente, trata-se de um minorante, duramente extraído de estatísticas não oficiais baseadas em notícias e relatos que muitas vezes nos roubam a dignidade mesmo na morte. Esse ano provavelmente bateremos esse nefasto recorde, só no primeiro semestre, mataram 89 pessoas trans.

Como podemos admitir que a população trans tenha expectativa média de 35 anos, quando o brasileiro médio vive até os 75?

Não sei se posso dizer que sou uma sobrevivente dessa santa guerra para nos erradicar. Se passei da marca dos 35 é porque soube muito bem me esconder, anular-me e jamais mostrar a minha verdadeira essência. Aguentei meu sofrimento calada, pois tinha medo desse fatídico destino. Felizmente, minhas condições iniciais e de contorno me permitiram chegar numa posição onde pudesse, com uma certa segurança, mandar às favas a cisheteronormatividade compulsória.

Declarei, mesmo que timidamente, no augurioso dia 29 de janeiro de 2019 minha travestilidade. Ecos de um grito por transição ou morte que há muito tempo me estava entalado na garganta. Não foi fácil começar oficialmente minha transição um dia após a triste constatação de que seríamos governades por um genocida que odeia toda e qualquer diferença. Mas, como em Beat É Protesto — O Funk pela Ótica Feminina:

“Vai ter que aturar mulher negra, trans, lésbica ocupando a diversidade dos espaços”

Vai ter travesti na academia! Vai ter travesti fazendo e divulgando ciência! O espaço sempre foi nosso. Vocês cis que acham que o estamos invadindo, quando na verdade, foram vocês que na ponta de um revólver o tomaram.

Queria ter tido uma mãe como a do Garoto do Fim do Mundo que, mesmo às escondidas de um pai violento, permitiu-lhe florescer. Quanta ternura! Quanta aceitação naquela breve cena em que ela tão candidamente lhe ensina a passar batom. Lembro da fascinação que o estojo vermelho de maquiagem da minha mãe exercia sobre mim. Era me proibido. Objeto que povoava apenas os mais desvairados devaneios. De certo, mesmo com dois anos nessa impensada mas tão esperada trajetória, ainda meio que tudo me parece tão surreal. Quase como um sonho.

Foram, afinal, mais de duas décadas trancafiadas num armário abafado e desolado. Prisioneira de mim em mim mesma. Refém do medo. Só a música a me consolar. Era o meu único santuário. A forma que me sobrara para dar vazão às minhas emoções. E talvez até mais do que o funk, o meu santuário musical: o metal, é machista, misógino, homofóbico e transfóbico. A constatação feita em Beat É Protesto — O Funk pela Ótica Feminina não podia ser mais verdadeira:

“E por que que ninguém recriminava os rockeiros falando? Porque eram homens brancos falando de putaria.”

Mulher, só se for a vocalista gostosa para entreter os olhos do metaleiro punheteiro. Nunca tive referências musicais como a Linn da Quebrada, a Liniker, ou a Urias. E, apesar de crescer no Capão Redondo,

“Eu (também) dizia que odiava funk. (Também d)izia que não gostava de funk. Funk não é cultura. Fui (também) educada (ou melhor doutrinada) a não gostar de funk.”

Mas como disse Linn da Quebrada em Beat É Protesto — O Funk pela Ótica Feminina:

“A música tem a importância de incomodar”

E por mais que no auge das minhas crises disfóricas eu não tinha uma travesti metaleira para me confortar, encontrava alento nas letras provocadoras e explicitamente antifascistas do Roger Waters. Por sinal, o que foi aquele show protesto do The Wall às vésperas da eleição do atual despresidente! Lavou a minha alma! Eu, com toda a minha travestilidade latente e completamente acuada pelos promessas de vindouras agressões, encontrei conforto e um pouquinho de esperança com o ecoar de gritos: “Bolsonaro fascista!” Sabia que não estava sozinha.

E não estava mesmo. Não foi apenas na música transgênera da Laura do Against Me!, da Camila das Clandestinas e da Marissa do Cretin que encontrei conforto. A minha esposa, um de meus irmãos, a grande parte de minhes amigues e minhes colegas de trabalho estavam ao meu lado. Foi difícil caminhar nas ruas como eu mesma pela primeira vez. Foi difícil dar a primeira aula como professora. Foi difícil proferir o primeiro seminário como doutora. E como a menina em Beat É Protesto — O Funk pela Ótica Feminina:

“Subir num palco para dançar pela primeira vez. Esperava julgamento, mas não teve.”

Talvez até tenha tido, mas não vai ser isso a me impedir de ser feliz!

Referências

[1] Beat é protesto — O funk pela ótica feminina (Brasil, 2019, 23’21”) https://ecofalante.org.br/filme/beat-e-protesto-o-funk-pela-otica-feminina

[2] Entre Mães (Brasil, 2019, 24’36”) https://ecofalante.org.br/filme/entre-maes

[3] Nem Puta Nem Santa (Brasil, 2019, 7’) https://ecofalante.org.br/filme/nem-puta-nem-santa

[4] O Garoto do Fim do Mundo (Brasil, 2019, 20’) https://ecofalante.org.br/filme/o-garoto-do-fim-do-mundo

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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