As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Quinta Semana
Ratos de Laboratório
Ser abertamente trans ou nunca contar sobre sua transgeneridade e tentar se miscisgenar? Eis uma questão que atormenta muitas pessoas trans ao longo de suas transições. Tal questionamento está sempre presente em fóruns, grupos ou qualquer outro espaço voltado para pessoas trans. Ele permeia inúmeras e intermináveis discussões. Pudera, não apenas a visibilidade do movimento trans está em jogo, mas principalmente a nossa própria segurança. Em nossas vidas moldadas pelo preconceito e violência, a morte está sempre a espreita e muitas vezes a passabilidade se torna a nossa única proteção. Como, então, condenar alguém que escolhe a segurança em detrimento do bem da comunidade?
Contudo, o preço não é baixo para nenhuma das alternativas. Miscisgenar-se requer abdicar de muitas coisas: desde cortar abruptamente os laços com qualquer pessoa que nos conhecesse em nossa vida passada a mudar de emprego ou até de cidade. Em suma, a completa miscisgenação ocorre apenas quando estamos dispostas a começar completamente do zero. É sair de uma prisão, para entrar em outra. Viver em um estado de eterna vigilância para não revelar nada que denuncie o nosso passado. Claro, nem todas nós recebemos à dádiva genética ou do dinheiro para infinitas cirurgias e procedimentos estéticos variados que nos permitam tal escolha, e muitas vezes o que nos resta é encarar a transfobia enraizada em nossa sociedade de frente. Nesse caso, não temos que enfrentar apenas a violência despertada pelo ódio a nossos corpos dissidentes de uma cisnormatividade compulsória, mas também toda uma curiosidade fetichizadora de nossas vivências e aparências.
Uma pesquisa realizada pela GLAAD (Gay and Lesbian Alliance Against Defamation) no final de 2019 constatou que cerca de 66% dos estadunidenses não conhecem pessoalmente uma pessoa trans [1]. Esse dado é aterrador em diversos aspectos. Em particular, porque a percepção pública de nossa comunidade ainda se resume majoritariamente aos horrendos esteriótipos que a mídia insiste em propagar. Para a travesti há apenas dois papéis: ou ela é a piada representada por um homem de saia que em vão insiste em ser lido como uma mulher, ou ela é a enganadora, cujo único propósito é ludibriar homens e os levar para a cama. No primeiro caso evocamos apenas risos e escárnio, já no segundo, um nojo doentio que justifica o nosso genocídio. Esse é o tamanho do peso que recai nos ombros das corajosas que por necessidade ou vontade se assumem publicamente.
Somos objetificadas em diversas escalas. Não bastasse o assédio que recebemos de homens sedentos por um desejo mórbido de nos possuir apenas por causa de nossa anatomia divergente, somos corriqueiramente usadas como espécimes em diversos estudos. Já perdi a conta de quantas vezes algum cis pediu para que participasse de estudos ou trabalhos sobre transgeneridade. Seja respondendo algum questionário, dando alguma entrevista ou parecer, elus estão na grande maioria das vezes apenas interessades em usar o nosso conhecimento arduamente adquirido apenas para proveito próprio. Quase nunca há um retorno positivo para a comunidade trans. Afinal, as nossas vivências são, em geral, severamente distorcidas por uma ótica cisnormativa que molda a narrativa para corroborar alguma tese que justifique qualquer transfobia enraizada ou que exalte apenas o aspecto caridoso da pessoa cis que a escreve.
Nessa semana tive duas experiências muito díspares com essa curiosidade cis que oscila entre a morbidez e a empatia. Primeiro, foi o contato de um menino que dizia estar escrevendo um livro com o pai e me pediu para que respondesse um questionário sobre a minha vivência. Partindo de premissas religiosas e supostamente embasadas em uma análise histórica e médica, eles visavam combater o transfobia dentro das igrejas. Contudo, não só nenhuma pessoa trans estava diretamente envolvida no trabalho, mas quem escreveria a parte principal do texto seria uma pessoa extremamente religiosa. Logo, era impossível que estivesse isento do dogmatismo cristão permeado por uma falsa caridade e uma síndrome de salvador. Não teria como tal obra beneficiar a comunidade trans. Com sorte, ela não seria usada contra nós. Sei que é tentador querer compartilhar nossas vivências e conhecimentos na esperança de que ela seja usada para reverter o preconceito que sofremos. Contudo, precisamos sempre ter muito cuidado a quem confiamos nossas narrativas.
Por outro lado, nem tudo parece estar perdido. No final da semana, conheci um grupo de quatro meninas cis que estão fazendo pré iniciação científica estudando a questão trans. Já tinha lido dois pequenos textos que elas escreveram como parte desse projeto. Apesar de pequenas imprecisões, tratava-se de um trabalho tão isento da cisnormatividade julgadora quanto possível, além de estar recheado de referências a Butler e Preciado. Elas definitivamente fizeram o dever de casa antes de vir me procurar para ouvir a minha perspectiva. Nenhuma pergunta invasiva, nenhuma curiosidade mórbida. Estavam preocupadas somente em entender como é a vivência de uma pessoa trans e como acreditamos ser possível diminuir a transfobia tão enraizada em nossa sociedade. Elas não queriam o protagonismo em uma história que não era delas, apenas amplificar um pouco mais as nossas vozes. São essas pequenas coisas que renovam a minha esperança de que um dia viveremos em uma sociedade mais igualitária e me dão forças para continuar a lutar.
[1] https://www.glaad.org/sites/default/files/P%26G_AdvertisingResearch.pdf