As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Semana
Mulher de Verdade
Já perdi a conta de quantas vezes fui interpelada por algum cis querendo saber o que era ser mulher para mim. Não duvido que seja uma das inquietações mais comuns, e que quase todos já tenham, em algum momento, desejado saber tal resposta. Felizmente, alguns ainda tem noção de quão invasiva é sua curiosidade e, talvez a contragosto, guardaram para si. Contudo, ninguém se preocupa em fazer a mesma pergunta para as meninas cis. Afinal, elas inatamente sabem o que é ser mulher. Nasceram assim. Ninguém questiona. A cisgeneridade é frágil. Fundamentada em absolutamente nada. E isso assusta, quando se deparam com mulheres trans e travestis. Como pode haver tanta segurança? Nunca pensaram sobre gênero como uma variável, apenas como uma verdade absoluta. Imutável. Quebram ao perceber que há muito além do que podem sequer imaginar. Ignorância plena. Uma divisão por zero. Não estão prontos para tamanha mudança de paradigma. A reação quando não violenta, é de negação. Não podemos existir e estragar o conforto que inventaram para seu mundinho cor de rosa.
Por outro lado, nós mulheres trans e travestis temos que trilhar essa jornada de desconstrução e questionamento na maioria das vezes sozinhas. É uma questão de sobrevivência: para não sucumbir à loucura. Muitas de nós sabem, desde a primeira infância, que há algo de diferente. Faltam, contudo, muitas vezes termos para descrevermos o que sentimos. Sabemos que está lá, porém não temos um nome. Resta apenas o desejo de experimentar as roupas, sapatos e maquiagens da mãe. Fazemos à revelia. Escondidas. E mesmo nos esgueirando pelos cantos obscuros, eles nos descobrem. Apanhamos. Choramos, mas em cantos onde não conseguem nos ver. Afinal, menino não pode chorar. Quando enfim descobrimos o que somos: mulheres trans ou travestis, descobrimos o terrível destino que nos aguarda apenas por querermos viver nossas verdades.
Abandono. Marginalidade. Prostituição. Violência. Morte. É o que nos espera. Tudo isso antes dos 35 anos. Perante essa perspectiva, um dilema insolúvel se apresenta. Ou arriscamos tudo: família, amigos e futuro para transicionarmos antes da testosterona marcar irreversivelmente nossos corpos, ou esperamos, suportando tamanha tortura, enquanto lutamos para conquistar nossa segurança. Ser alguém antes de ser eu mesma foi meu mote por muitos anos. Escondi minha essência para poder conquistar meu lugar ao Sol. Sofri conforme meu corpo se transfigurava em uma monstruosidade. Endureci, transformando-me em algo que eu não era: um ser abjeto e mesquinho. Desprezível. Não foram poucos os momentos nessa jornada solitária que desejei desistir. Por que não nascera cis? Odiava o meu destino. Mas esse quis, de alguma forma, que continuasse. O acaso de encontrar a pessoa certa no momento certo me salvou. Transicionei velha, depois dos 30.
Fazer as pazes com as condições iniciais e de contorno que me foram dadas, bem como com as escolhas que tive que fazer não está sendo um processo trivial. Aprender a me amar e ter orgulho de quem sou não é fácil. Ainda mais quando a sociedade faz questão de lembrar o quão anátema minha existência é. Isso porque, diferentemente de muitas das minhas irmãs, ainda restaram diversos privilégios a me proteger. As cicatrizes deixadas pela testosterona também não ajudam. Marcas de um passado que preferiria esquecer. Lembram não apenas do sofrimento, mas também das experiências que me foram negadas ao crescer. Ainda há uma longa jornada de autoaceitação à minha frente. Contudo, hoje, já consigo dizer que me orgulho da travesti que me tornei. E àqueles cis que vierem por ventura me indagar se sou mulher de verdade, responderei com as sabias palavras da Simone: “não se nasce mulher, torna-se mulher.”