As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Septuagésima Primeira Semana
Feminismo e a Soma de Nossas Histórias
Quem por aqui me acompanha certamente já sabe que a transição de gênero é uma das aventuras mais incertas que podemos conceber. Quase tudo se arrisca: da vida social à profissional, do amor à segurança. Certezas são poucas e nenhuma boa: abandono, ostracismo e medos. Uma miríade de medos. Um dos que mais me atormentou na iminência de transicionar era o de não ter espaços seguros. Seria o feminismo uma salvaguarda da minha existência? Um porto seguro a me acolher em meu desespero? A me proteger das agressões que certamente viriam? Ou seria apenas mais um espaço a me ser negado? Mais uma porta fechada? Mais uma pedrada na cara?
Histórias de agressões a mulheres trans e travestis partindo das famigeradas feministas radicais que excluem trans, as enfandonhas frets, não faltam. Desde ofensas descaradas protegidas pelo anonimato da rede negando a minha feminilidade que periodicamente aparecem em minhas caixas de mensagens a ícones da transfobia descarada (e de mais uma montanha de preconceitos) como a criadora de Arry, o Oleiro. Alguém cuja fama e séquito de fãs parece permitir e inflamar os mais escabrosos insultos. Uma desmiolada que infelizmente ainda seduz muitos ouvidos e dá força para vitupérios como “você sabe que mulheres não têm pênis, né?”
Por esse e outro motivos sempre tive muito medo do movimento feminista. O medo de não ser aceita como uma igual. O medo de não ser acolhida. O medo de me ter negado o único refúgio à opressão masculina. Tudo isso porque tenho um falo. Não por escolha, mas por destino. Não se trata uma arma para subjugar mulheres, mas sim de um fardo a carregar. Já o odiei. Já o desejei arrancar. Um símbolo de tudo o que eu não era. Um símbolo poderoso que evoca eras de abuso, sim. Contudo, um símbolo que pode ser ressignificado. Uma jornada deveras tortuosa, porém possível. Entretanto, se o sagrado feminino se recusa a abraçar as negras, as deficientes, as indígenas, as gordas e as da periferia, por que deveria me amparar, eu que carrego a arma do inimigo entre as pernas?
Todas essas inseguranças ganham ainda mais forças nas proximidades do dia da mulher. Os ânimos ficam muito mais exaltados. Lembro do receio que tive em participar de uma roda de conversa organizada pelo coletivo feminista da faculdade onde leciono no ano passado, meu primeiro como mulher. Tamanho era o medo que só consegui ir acompanhada da esposa. Ela, que fora a minha rocha nas primeiras incursões ao banheiro feminino, estava novamente a me apoiar. Para nossa surpresa, não só fui bem recebida como queriam ouvir a minha perspectiva.
Desde então foram inúmeros convites, inúmeros eventos que participei apenas para compartilhar a minha vivência. Surpresa com a quantidade de pessoas dispostas a ouvir. Feliz com as palavras de apoio e compreensão que recebi de volta. Nessa semana feminista foram dois. Um aqui na EEL/USP e outro na USP de Ribeirão Preto. No primeiro, tive a honra de participar da mesa de abertura junto com a Joyce, a mesma que me inspirou e me acolheu quando acuada participei do evento no ano anterior. Foi muito bom partilhar das intersecções que nos unem, ela negra, eu travesti, as dores são as mesmas e unidas somos mais fortes. Posteriormente, falei junto com a esposa sobre como é ser mulher LGBTQI+ na universidade. Vários alunos presentes, não apenas para ouvir, mas também para partilhar de suas experiências de descoberta, preconceito e exclusão.
Ribeirão Preto ainda me surpreendeu mais. Não bastasse a acolhida extremamente calorosa, o evento em si foi lindo. Na mesa uma diversidade ímpar: uma mulher indígena, uma travesti, uma muçulmana, duas negras e uma branca com descendência chinesa. Discursos plurais. Tamikuã falou do drama que seu povo passa e como ele se intensificou com o atual desgoverno. Narrou um pouco da luta para proteger a terra e da dor de ver a sua cultura cada vez mais atacada: da língua proibida à oca sagrada em chamas. Dissertei um pouco sobre a inamabilidade dos corpos transfemininos e como o cistema não apenas nos nega o direito de viver com dignidade, mas principalmente, o afeto. Francirosy narrou como é vivenciar uma fé estigmatizada pelo terror ao mesmo tempo que tinha sua posição como cientista diminuída por uma comunidade extremamente descrente. Inara denunciou a falta de espaço que as mulheres negras enfrentam na academia e como suas narrativas são paulatinamente apagadas. Já Maria Eduarda discursou sobre a importância da representatividade feminina na política. Finalmente, Annie falou das dificuldades que as mulheres enfrentam para subir na carreira científica. As falas de membros da audiência não foram menos tocantes. A que mais me marcou foi a da Mayra que me fez perceber como a experiência de deficientes em não poder dar a própria voz às suas narrativas e serem sempre descrites como corajoses se aproxima, e muito, do drama vivido pela população trans.
As lições dessa semana foram muitas. Sentir-se querida e ser ouvida. Aprender mais sobre o drama de outras mulheres. Perceber que não estou só. Talvez não porque temos sororidade, afinal, muito do feminismo ainda reflete apenas a narrativa da mulher branca cis heterossexual. Uma opressora dentre as oprimidas. Mas há espaço para mudança. Mudança que vem da dor. A dor que todas partilhamos. A dor que surge da opressão promovida pelo patriarcado. Pelo descaso com nossos corpos. Pelos abusos que sofremos diariamente. Dororidade. Que uma não solte a mão da outra. Que uma use de seus parcos privilégios para proteger a outra. Que essa união persista quando a dor acabar.