As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Septuagésima Quinta Semana

Gabrielle Weber
3 min readApr 11, 2020

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Distorções Disfóricas

Disforia, do grego, difícil de suportar. Um estado de inquietação ou de insatisfação generalizada com a vida. Palavra lúgubre que me acompanha desde muito antes de eu ser capaz de entender seu significado. No meu caso, resultado da dissonância cognitiva de estar presa em um corpo cujos sexos consciente e subconsciente estavam em profundo desacerto. Minha cabeça me dizia menina, mas os olhos apenas um menino enxergavam. Não que essa percepção tenha sido fácil de alcançar. Por muito tempo foi uma dor que não tinha nome. Ela estava sempre ali. Ora ofuscada por felicidades momentâneas, ora me acometendo em extrema agonia.

Há ainda grande debate sobre o papel da disforia na experiência trans. Alguns advogam que não é preciso ter disforia para ser trans, bastando apenas se identificar como tal. Acho essa uma visão deveras simplista, pois ignora todos os desdobramentos acarretados por uma vivência em dissonância cognitiva. Para mim a disforia é uma condição necessária, porém não suficiente. Um eterno conflito que, consciente ou inconscientemente, causa danos e nos leva inexoravelmente a questionar nossas mais profundas definições.

A transição de gênero alivia, e muito, seus sintomas. Vejo isso claramente em minha própria experiência. Uma diminuição quase monotônica conforme meu corpo se adequava à minha vontade. Contudo, engana-se quem acha que se trata de uma panaceia. Disforia é uma condição para a vida. Pode permanecer oculta e quietinha enquanto a euforia nos entretêm. Apenas à espreita do momento mais oportuno para mostrar suas garras e dentes afiados nesse período de hibernação.

Bastou uma foto tirada do ângulo errado dias atrás para conjurá-la de volta à vida. O terror da careca iminente evidenciada por entradas ameaçadoras. Uma sombra de um passado não tão distante voltava a me atormentar. Aquele mesmo que fora o estopim da minha transição. Mesmo os mais de 17 meses de tratamento hormonal só foram capazes de atenuar levemente o problema. As entradas ainda estão lá para ressaltar a minha enorme testa. Uma vastidão que evoca um indizível asco por mim mesma. De um súbito todas as minhas conquistas desvanecem, restando-me apenas a monstruosidade de outrora.

A disforia distorce nossa percepção. Aceitar esse fato é tudo o que nos resta. É o primeiro passo, se quisermos tomar alguma atitude para aliviar o problema. Já não mais acredito que os hormônios sozinhos serão capazes de resolvê-lo. Há alguns procedimentos cirúrgicos caros e bem doloridos que apresentam resultados um tanto quanto duvidosos. Não sei se teria coragem. Talvez um novo corte de cabelo que melhor oculte as entradas e a testa. Mas não sei se gosto de franja. Talvez o que me reste seja aceitar que sou assim. Há inúmeras outras mulheres com testas maiores e entradas mais proeminentes. Aprender que, como elas, eu também posso ser bonita do meu próprio jeito.

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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