As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Septuagésima Terceira Semana
Uma História, Muitos Aniversários
Pode-se de uma certa forma dizer que eu nasci numa obscura noite de domingo nos longínquos idos de 1994. A data exata se perdeu com o passar do tempo, restando-me apenas as saudosas lembranças daquele alumbramento abafadas pelo meu primeiro e brutal contato com a transfobia. Era para ser uma noite de domingo ordinária em família. Estávamos todos empoleirados na cama dos meus pais assistindo as banalidades usualmente exibidas pelo fantástico, quando de um súbito somos apresentados ao bizarro e para mim fascinante mundo da transgeneridade.
Certamente meus pais já tinham ouvido inúmeras (e horrorosas) histórias sobre travestis, mas era o meu primeiro contato. Não sabia que existiam seres capazes de moldar o próprio corpo à sua vontade. Fiquei mesmerizada. Meus olhos não desgrudavam da telinha, enquanto meu coração disparava. Em alguns poucos segundos, muito do que eu tinha vivido naqueles parcos dez anos fez pela primeira vez sentido. Descobrira enfim o que eu era: uma travesti. Mais do que isso, existia uma cura para o vazio, para o sofrimento e para a constante insatisfação que preenchiam a minha vida: a transição. Estava empolgada. Poderia ser realmente feliz e plena.
Mas não agora. Conforme a narrativa avançava, ficava cada vez mais claro o destino reservado às que ousavam desafiar a natureza e a sociedade para serem elas mesmas: o ostracismo, a marginalidade e a prostituição. Não bastasse o tom de escárnio da reportagem, meus pais ecoavam e complementavam seu discurso transfóbico. Fui do êxtase ao choro. Lágrimas que tive que engolir para não apanhar depois. Um sonho natimorto.
Por mais que tentasse, não conseguia enterrar a garota que habitava em minhas entranhas. Ao longo dos próximos 24 anos, ela insistia em não se calar. Vozes e desejos que não conseguia abafar. Estavam sempre ali para me lembrar de minha essência. Sofrimento. Escapismo. Despersonalização. Vestia uma máscara para ser aceita pela sociedade. Fugir do destino de garota de programa. Prometia a mim mesma, quando começar a faculdade transiciono. Mas não tinha a liberdade para isso: dependia financeiramente dos meus pais. Achei que postergando o sonho para o fim da faculdade, seria capaz. Ledo engano, bolsa de doutorado direto, pelo menos no começo, não sustenta ninguém. Talvez depois que conseguisse uma posição estável numa universidade. Afinal, quem contrataria uma travesti? E de adiamento em adiamento, o sonho se tornava cada vez mais distante com os anos que se passavam. A máscara cada vez mais indistinguível da minha face. Já estava velha demais para isso.
Resignada a viver apenas nos sonhos e na fantasia dos jogos de RPG, não contava com as reviravoltas que a vida pode tomar. A disforia eventualmente tomou conta dos meus dias. Os sonhos se misturavam com a realidade. Não raro via o rosto da garota rompendo momentaneamente a máscara barbuda que a sufocava. Estava ficando louca? Desespero. Tentativa de suicídio. Daí, ela, uma ilustre desconhecida, apareceu sem ser convidada e me contou que era possível. Se ela fora capaz de transicionar depois dos trinta e ser feliz, havia esperança. Se não fosse o caso, restava-me ainda a primeira opção. Não tinha mais porque adiar a tentativa. O parto que começara há mais de duas décadas podia finalmente terminar.
Hoje não comemoro apenas trinta e seis anos de vida, comemoro um ano e dez meses do meu renascimento e um ano e cinco meses de ter tomado controle do meu corpo. Aos poucos ele está tomando a forma que sempre deveria ter tido. A pele está mais macia. Os pelos cada vez mais ralos e claros. Os seios crescem e já balançam com meu caminhar. Quanta sensibilidade! Minha bunda também está maior e mais arredondada. Que vontade de rebolar! O quadril mais largo e a cintura mais fina já me conferem uma silhueta muito mais feminina. E daí que tenho ombros largos. Meu rosto mudou, meu cabelo encheu. Meus olhos têm mais vida, as emoções, mais cores. O sorriso vem muito mais fácil.
Não é raro perder-me pelada na frente do espelho por horas. Gosto cada dia mais do que vejo. Da forma que a luz se espalha pelas curvas e cores do meu corpo. Danço ao som do tilintar das argolas que agora me adornam. Liberdade para ser eu como sempre quis. Danço sozinha e para mim mesma. Inebriada por uma felicidade que julgava impossível. Sinto que vivo meu sonho. Plenitude e serenidade. Ainda não sou uma comigo mesma. Mas o limite cada vez mais se aproxima da unidade. Tudo é ainda um tanto surreal.