Através de seus olhos…

Gabrielle Weber
4 min readOct 27, 2019

--

Causos da Quinta Semana nas Terras do Estrogênio

Basicamente nenhuma novidade do ponto de vista físico e por isso não vou me delongar demasiadamente nelas para poder falar um pouco mais sobre as mudanças mentais e causos da minha transição. Nesse quesito, sim, a semana foi deveras interessante.

A fome, o sono e o cansaço estão bem sob controle. As dores nos peitos são constantes e meus mamilos finalmente saltaram. Possivelmente teremos novidades nesse aspecto em breve. A libido está baixa. Não me lembro de ter passado uma semana sem ter a necessidade de me masturbar. Apenas uma vez, e apenas para testar a integridade do sistema. Ainda funciona. As ereções são mais custosas de atingir e manter. Os antigos estímulos cada vez mais ineficazes. Em breve, terei que explorar alternativas. Os pelos estão crescendo mais devagar. Meu odor definitivamente está mudando. O futum acre após atividades físicas está quase imperceptível.

Um dia desses estava ouvindo “Through Her Eyes” do Dream Theater (https://youtu.be/SjINXbJ3vdo) e me identifiquei profundamente com um verso:

“I’m learning all about my life

By looking through her eyes”

Não era o que eles queriam dizer, mas me fez perceber o quanto estou começando a entender, explorar e aceitar diversos aspectos da minha vida ao enxergar o mundo pela perspectiva de uma garota. Com a profunda diferença de que essa garota sou eu. O tempo deixou de ser um carrasco para se tornar um aliado. Sorrio com muito mais facilidade. A tal ponto de achar que meu rosto estava começando a mudar. Tinha algo definitivamente diferente nas minhas feições que não conseguia identificar. Conversando hoje mais cedo com a minha esposa, percebi que era apenas um reflexo de estar mais feliz e que com isso a minha carranca usual começou a se dissipar.

Essa mudança de vida não tem me ajudado só a lidar com as dificuldades cotidianas e as minhas limitações, mas principalmente a aproveitar mais intensamente as pequenas alegrias do dia-a-dia. Nessa terça, recebi a notícia de que um artigo tinha sido aceito para publicação. O primeiro desde que comecei a transicionar. Contudo, além disso ele não tinha nada de especialmente marcante. Já publiquei resultados muito mais importantes e relevantes para a minha carreira. Mesmo assim, não me lembro de ter ficado tão feliz. Antes era apenas uma sensação efêmera de alívio, aquela que vem quando sentimos que cumprimos adequadamente as nossas obrigações. Tão logo vinha, tão logo sumia e retornava ao meus estado de viciada à procura de sua próxima dose. Não foi assim dessa vez. Ainda hoje sinto aquela ponta de felicidade e orgulho. Que seja dessa maneira daqui para frente.

Ainda estou profundamente no armário. Apenas poucas pessoas sabem que sou trans e que estou transicionando. Nenhuma delas da minha família. Tenho uma relação muito artificial com meus pais e, infelizmente, só fui perceber isso muito recentemente. Por isso ainda não aceitei bem a realidade de não ter a relação profunda que fantasiara. Tenho muito medo de como eles receberão essa notícia e de ser abandonada. Numa dessas madrugadas, acordei aos prantos lembrando de nosso último Natal juntos. Meus irmãos e eu montamos uma banda e viramos à noite tocando músicas que eram cantadas por nossos pais e esposas. Foi um momento tão mágico, que quase esquecemos de trocar os presentes. Neste Natal não estaremos juntos, exatamente porque não me imagino capaz de segurar meu segredo na próxima vez que nos vermos pessoalmente e tenho medo de sua reação.

Aos poucos estou criando coragem para contar sobre a minha transição para os meus amigos mais próximos. Até agora, só recebi sorrisos e apoio incondicional, apesar de uma estranheza momentânea com a notícia. Nessa semana, marquei um almoço com uma amiga do trabalho com quem não conversava adequadamente há algum tempo e resolvi contar. Sempre fomos muito próximas. A ponto de evitar começar conversas com ela para não perder o dia de trabalho. Ela foi a primeira que não se assustou com a revelação. Foi além, disse que sempre soubera que tinha algo de diferente em mim. Não sabia exatamente o que era, mas tinha certeza que eu não era como os outros homens. Imediatamente, ela mudou a postura e começou a me tratar como a mulher que sou. Disse que eu já tinha feições femininas e que me tornaria uma mulher linda. Conversamos até anoitecer sem perceber o tempo passar. Falamos de tudo um pouco. Rimos adoidado elocubrando sobre como seriam as reações de nossos colegas de trabalho. Foi uma tarde maravilhosa. A primeira vez que experimentei conversa de mulher. Estava em casa, finalmente.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Gabrielle Weber
Gabrielle Weber

Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

No responses yet

Write a response