O Início das Aventuras nas Terras do Estrogênio

Olá a todes! Para quem não me conhece eu sou a Gabrielle, mas podem me chamar de Gabi ou Bi. Sou uma mulher trans que se assumiu um pouco mais tarde na vida. No famigerado dia após o começo do fim do Brasil, vulgo 29 de outubro de 2018, iniciei finalmente minha transição hormonal e decidi escrever uma série de textos (tentativamente) semanais documentando minha jornada. Esse tipo de crônica é bem comum em sites estrangeiros e me ajudaram bastante não só a tomar a decisão de começar a minha transição hormonal, como a me preparar psicologicamente para ela. Contudo, não encontrei nada semelhante em português refletindo a realidade brasileira. Espero que minha perspectiva ajude quem por ventura leia este relato.
Como já dizia o sabio Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas: “Begin at the beginning,” the King said, very gravely, “and go on till you come to the end: then stop.” De forma que um certo prólogo se faz necessário.
Eu tenho 35 anos, sou professora universitária, profissionalmente, extremamente bem sucedida. Conquistei quase tudo que almejei quando decidi por esse caminho profissional há quase 20 anos. Minha vida amorosa também não poderia estar melhor, completei recentemente 15 anos juntos com a minha contraparte e cada dia me sinto mais apaixonada pela mulher maravilhosa que ela é. A despeito de todo esse sucesso, por algum motivo que desconhecia (ou talvez, ignorasse com todas as minhas forças), eu era uma pessoa extremamente infeliz. Miserável, quiçá. Não quero entrar em muitos detalhes sobre como me descobri trans para não prolongar demasiadamente essa já longa digressão, mas em meados de maio de 2018, a realidade de que eu era uma mulher que tentava com todas as forças se passar por um homem veio à tona. Foi uma tempestade tão brutal que precisei fazer alguma coisa para não desvanecer em sua escuridão. Passei uma semana juntando as poucas forças que me restavam para me abrir para minha parceira. Foi uma conversa difícil. De fato, a mais difícil da minha vida. As palavras certas simplesmente não vinham. Felizmente, ela calmamente me ajudou a me expressar e no final me abraçou, dizendo que estaria comigo ao longo dessa jornada que acabara de se iniciar.
A busca por apoio médico e psicológico não foi fácil, em particular, porque moro em uma cidade pequena. Felizmente, a dermatologista com quem já me tratava foi um amor e super compreensiva quando me abri para ela. A primeira vitória veio quando ela receitou finasterida e minoxidil para aliviar a disforia que aumentava com cada fio de cabelo que caia. No começo de agosto comecei acompanhamento psicológico e no final de setembro depois de passar por dois endocrinologistas, finalmente, encontrei um que assumiria o meu caso. Um mês, sei lá quantos exames de sangue e ultrassons de todas as glândulas depois, chegou o dia do famigerado retorno. Saí da consulta em lágrimas de alegria com a receita para meus hormônios em mãos. Contudo, felicidade de pobre é fugaz e, tão rápido quanto veio, desvaneceu. Bastou que o farmacêutico me dissesse que a medicação receitada estava em falta no mercado, para bater aquele desespero. Havia tudo sido em vão? Mas a gente insiste, não sabe perder. Assim que me acalmei liguei para o meu médico e ele receitou um outro remédio que poderia comprar sem receita.
Para referência futura, estou usando 203 µg de norelgestromina e 33,9 µg de etinilestradiol por dia na forma de adesivo transdérmico. Sei que não é o ideal por não ser bioidêntico, mas era o que tinha para hoje. Isso deve ser resolvido na minha próxima consulta, afinal a medicação originalmente prescrita era bioidêntica.
E foi assim que na noite do dia 29 de outubro de 2018, minha esposa aplicou o primeiro adesivo transdérmico nas minhas costas e uma nova vida começou. Não tenho palavras para descrever o quão emocionante foi esse momento, em particular, porque pude compartilhá-la com a pessoa mais importante da minha vida. Um provérbio chinês já dizia: “Qiānlǐ zhī xíng, shǐyú zú xià” (Uma jornada de mil quilômetros começa sob seus pés).
O primeiro dia foi repleto da dualidade: nada mudou, porém está tudo diferente. Nenhuma mudança física, mas emocionalmente, eu era outra pessoa. Finalmente, compreendi algo que uma pessoa muito importante dizia: a sensação de estar nas nuvens era real. Transbordava de felicidade despropositada. Para dar um pouco de noção de escala, estava ainda sob efeito da ressaca moral devida às eleições presidenciais. Saber que a cada dia que passasse seria mais eu mesma conforme abandonava os grilhões da minha finada masculinidade, era tão reconfortante. Havia uma luz no final do túnel que se aproximava e não era a de um trem de carga.
O segundo dia foi marcado pela primeira comprovação física de que os hormônios estavam surtindo efeito: acordei com uma dor de cabeça desgraçada. Nunca imaginei que um dia ficaria feliz por ter uma dor de cabeça. Enfim, foi um dia difícil, pois mesmo o remédio que costumo usar não aliviou a dor por completo, essa me acompanhou pelo resto do dia juntamente com leve enjôos. Ademais, tive pela primeira vez uma sensação fantasma de que tinha seios. Foi maravilhoso. E o melhor é que ela tem me acompanhado desde então. Não tinha nada de físico ainda nela, era puramente psicológico, mas tão validadora.
No terceiro dia, um cansaço incomensurável se apoderou de mim. Não sei se os hormônios tiveram alguma contribuição, ou se era apenas uma conjunção de fatores, pois afinal tenho trabalhado muito nesse último ano além de ter que lidar com todos os fatores relacionados à transição. Contudo, nem essa quase estafa conseguiu tirar o sorriso do meu rosto. Além disso, notei que o meu olfato, que já era bom, melhorou. Esse era um dos efeitos da terapia hormonal que mais temia, pois um dos gatilhos das minhas dores de cabeça são cheiros fortes. Contudo, essa melhora no olfato não está relacionada à intensidade dos cheiros, e sim à percepção de novas nuances nos odores. Claramente, o sabor de muitas coisas também foi afetado.
O quarto dia foi uma montanha-russa emocional. Não me lembro de ter chorado tantas vezes em um único dia. Tive uma conversa pesada com a minha esposa durante o almoço sobre a influência controladora que meus pais exercem na minha vida e como isso está relacionado com a fase de questionamento, não só de gênero, mas principalmente de retomar o controle da minha vida que estou passando. Depois que essa onda de choro passou, fui chorar um pouco mais assistindo Bohemian Rhapsody, o filme biográfico do Queen. O filme é fenomenal e cru. Pegou bem no âmago da minha alma, não só porque cresci ouvindo Queen, mas também por envolver aspectos sobre como o Freddie Mercury lidou com a sexualidade dele.
No quinto dia, resolvi retomar os treinos de kung fu, que estavam parados por diversos motivos. Nada como suar um pouco a camisa e se concentrar totalmente em algo completamente diferente para poder descansar um pouco a cabeça. Pratico kung fu há pelo menos 15 anos, e esse não foi o primeiro hiato de 2 semanas de treino, mas não me lembro de ter sentido tamanha falta de vigor, energia durante um. O pique simplesmente acabou muito antes do usual. Além disso, só reparei que estava fedendo menos após quase duas horas pulando de um lado para o outro.
No sexto dia, acordei com uma leve sensação de pressão e coceira nos peitos. Será que isso significa que eles estão crescendo? Só o tempo dirá, mas já estou tão feliz e tão satisfeita por ter começado a trilhar esse caminho. Parte das dúvidas e medos que tinha começaram a sumir. Nada como retomar controle da sua vida e vivê-la como devido em toda a sua intensidade.
Para finalizar esse relato deixo alguns comentários NSFW. Nessa primeira semana, não senti nenhuma diferença na minha libido, que continua extremamente alta. Continuo tendo ereções espontâneas, muito embora acredite que elas tenham (felizmente) diminuído em frequência. Quanto à intensidade das ereções ainda nenhuma mudança.