Quando o sonho começa a se tornar realidade…

Gabrielle Weber
3 min readNov 24, 2019

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Vislumbres de uma felicidade na sétima semana da jornada pelas Terras do Estrogênio

Essa semana começou com um grande receio, seria a primeira que vez ficaria sozinha desde que comecei a transição. A esposa foi fazer um curso em outra cidade. Medo dos demônios que a solidão podia despertar. Medo de não ter com que desabafar. Medo de não ter um ombro para chorar. Felizmente, eu tenho amigos, alguns surgiram dos lugares mais inesperados, que se preocuparam e cuidaram de mim. Que sempre tinham as palavras certas para me acalmar, para me inspirar. Foi uma semana intensa e repleta de realizações.

Os demônios estavam sim à espreita, seja na forma de insegurança ou pesadelos. Certa noite sonhei que estava no meu antigo quarto de adolescente, fazendo alguma coisa no computador, sentada em uma cadeira linda, super ornamentada, toda afrescalhada. Meu pai se aproximava de mim e ralhava: “Essa cadeira não é para você. É da sua mãe. Filho homem meu só senta naquela.” E apontava para uma cadeira austera no canto do quarto. Acordei em prantos. Custei muito a me acalmar e voltar a dormir. Tive outros, todos versando sobre o mesmo tema: a não aceitação por parte de meus pais. Esse foi apenas o mais marcante. Provavelmente, fragmentos chafurdados nas brumas mais obscuras da memória.

Mas como disse, foram mais momentos felizes. Descobri a famigerada conexão feminina. Conversas que jamais teria como o meu antigo eu. Expressões genuínas de aceitação como a da minha aluna, que apesar de não saber que sou trans, ofereceu-se para cuidar das minhas cutículas, ao ver minhas unhas porcamente pintadas. As palavras fortes sobre o poder de superação do amor paterno que um amigo ofereceu ao saber dos meus temores. Descobrir que meus orientandos me veem como uma segunda mãe. As brincadeiras inocentes da minha vó que dão a entender que já sabe o que está acontecendo.

A cada dia que passa, mais e mais me sinto confortável em minha verdadeira pele. Sair sem a máscara de outrora já não é tão assustador. Passear pela Liberdade, pegar metro, andar no shopping, encontrar colegas que nunca viram o meu verdadeiro eu. Tudo parece tão natural. A vida está ficando mais leve, mais colorida, mais divertida. As pessoas já notam essa mudança e fazem questão de comentar como eu pareço mais feliz, mais de bem com a vida. Para alguns, já sou, quem diria, até motivo de inspiração de auto-aceitação e para se abrir mais com o mundo.

As mudanças físicas continuam a me surpreender. Um dia desses ao acordar, mas ainda torpe de sono, passei a mão em minha perna e jurei que tinha sido na da minha esposa, que já havia voltado. Passei a mão na perna dela e de novo na minha. Surpresa com a similaridade nas texturas. Foi inevitável lembrar do delicioso choque de fofura que senti ao tocar em sua pele em nosso primeiro encontro.

O maior choque, contudo, veio de outra mudança. Certo dia, conversando com uma dessas pessoas que a vida lhe apresenta nas horas mais apropriadas, com as quais rola uma conexão instantânea, quase visceral, mostrei uma foto minha recente. Ela respondeu com um comentário de sua mãe sobre as minhas curvas que me pegou desprevenida. Não esperava que elas aparecessem tão cedo. Só caí mesmo em mim, sim, isso está realmente acontecendo, dias depois quando minha esposa teceu o mesmo comentário. Esse negócio de redistribuição de gordura corporal é mesmo mágico.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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