Saindo do Armário para a Família

Gabrielle Weber
10 min readFeb 23, 2020

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As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Oitava e Nona Semanas

Não, eu não desisti de compartilhar as minhas experiências e aventuras nesse começo de transição com vocês. Escrever esses relatos têm sido realmente terapêutico e me feito pensar de uma forma muito positiva sobre a minha vida e sobre o caminho que ela tem tomado. Só foram mesmo duas semanas muito intensas e eu não tive nem tempo de refletir o suficiente sobre tudo o que aconteceu, muito menos de sentar na frente do meu computador para redigir o texto. Então, preparem-se para textão. Nem li e nem lerei no final.

Comecemos pelas mudanças físicas. Como eu já tinha comentado diminuíram as novidades, mas elas continuam gradualmente a me surpreender. Primeiramente, percebi que já não posso mais sair sem camisa por aí. Definitivamente tenho peitos. São pequenos, mas são meus e são obviamente femininos. Ainda estão nos primeiros estágios de desenvolvimento, parece que tem um elipsoide com eixo maior de aproximadamente 4 cm atrás de cada mamilo. Eles estão bem sensíveis. As dores continuam, só mudaram um pouco a forma de apresentação. Parecem com uma leve queimação, quase imperceptível, se sua constância não fosse quase insuportável. Felizmente, o abraço de um sutiã alivia bastante essa sensação incômoda. Além dessa, há os esporádicos choques (bem que uma grande amiga me avisou) e uma coceira que quando começa não para nem com reza brava.

Minha pele também está mais macia. Em algum relato passado comentei que sua maciez estava comparável com a de minha esposa, pois bem ao longo dessa semana foi a vez dela de ter essa mesma constatação. Ufa, não estou ficando louca e vendo, ou melhor, sentindo coisas onde elas não existem. Certa noite, estávamos deitadas e ela ficou alisando as minhas coxas com uma mão e as dela com a outra e me disse que as texturas eram comparáveis. Também estou ganhando mais cintura e curvas mais femininas. Já haviam comentado sobre isso comigo, mas sabe como é: a gente custa a acreditar nesse tipo de coisa. Contudo, essa semana ao iniciar a purga do meu antigo guarda-roupa, constatei que nenhuma das minhas calças de menino me vestiram bem. Já tenho curvas demais para usar calças retas.

Chegamos então aos eventos tensos dessa quinzena. Saí do armário para a minha família. Comecei contando para a minha vó, que foi quem me criou e a única pessoa da minha família que teria a oportunidade de contar pessoalmente, pois meus pais e irmãos moram em outras cidades. Como evidenciado pela brincadeira do sutiã improvisado que fizera outrora, minha vó já tinha percebido que alguma coisa estava acontecendo. Eu estava mais sorridente, cuidando-me mais e me vestindo melhor. Sobretudo, eu parecia mais feliz. Ela só não sabia o porquê, porém a revelação não lhe foi surpreendente. Ela me abraçou, disse que me amava e bastava para ela que eu estivesse feliz. De pronto ela já começou a tentar se referir a mim no feminino. A sua única preocupação foi sobre como os meus pais reagiriam à notícia. Para completar a alegria, fomos mais tarde a uma C&A comprar umas roupas mais adequadas para mim. A experiência foi maravilhosa não só pelo apoio da minha vó, mas porque a C&A realmente está tentando ser mais inclusiva. Os funcionários me trataram muito bem, não erraram uma vez sequer os meus pronomes. Não houve nenhuma dúvida sobre qual provador eu deveria usar. Além disso, o que eles falaram de contratar pessoas trans é verdade: tinha pelo menos uma moça trans trabalhando lá.

No dia seguinte fui do inferno ao céu passando por todos os círculos conhecidos e desconhecidos. Já vinha trabalhando numa carta para mandar para meus pais e irmãos há alguns dias e depois do almoço criei coragem e enviei no grupo de WhatsApp da família juntamente com um conjunto de instruções: leiam a carta, assistam aos vídeos (vídeo 1 e vídeo 2), respondam a essa mensagem com “lido e entendido” que eu ligarei em seguida. Minha mãe quase que instantaneamente tentou me ligar. Declinei a ligação e mandei uma mensagem perguntando o óbvio se tinha seguido as instruções, a resposta: claro que não. Fiquei firme e respondi que só falaria com ela se fizesse o que eu pedira.

Nesse ínterim de esperar minha mãe, meu irmão (A) mandou uma mensagem de áudio dizendo que me amava da mesma forma e que estaria ao meu lado para o que desse e viesse. Estava genuinamente feliz que eu tinha me encontrado. Falou que mais tarde ele me ligaria, pois estava muito enrolado com coisas do trabalho. Não esperava nada diferente dele, A é doze anos mais novo do que eu e desde que nasceu sempre fomos muito grudados. Sabia que entenderia, meu único motivo para não ter lhe contado antes foi o receio de que ele ficasse em uma situação complicada com a nossa meio que abusiva mãe. Dias depois a gente teve uma longa e tenra conversa, mais sobre nos reconectarmos e de como lidaremos com nossos pais.

Meia hora depois da ligação inicial minha mãe me mandou uma mensagem de texto dizendo que tinha lido e entendido. Arrumei um canto bem confortável em casa, respirei fundo e liguei. Ela estava chocada, ultrajada para não dizer desesperada. Contudo, mal começamos a conversar de uma maneira minimamente produtiva, tocaram em casa. Minha vó, que saíra há pouco para comprar pão, havia caído antes mesmo de deixar o condomínio e machucou a mão. Custosamente me recompus e peguei o carro em direção ao hospital mais próximo que atendia ao convênio dela. Depois de mais de uma hora presas no trânsito, pelo menos o atendimento no hospital foi rápido. Triagem, consulta inicial, raio X, retorno ao médico e gesso. Foi apenas um grande susto, não quebrou nada. A mão e punho só estavam inchados em decorrência da pancada. Deveria ceder em poucos dias. A imobilização seria apenas por precaução. De volta pro carro. Mais duas horas presas no trânsito. Pelo menos aproveitamos esse tempo para conversar bastante. Minha vó perguntou um monte de coisas sobre a minha transição.

A volta para casa teria sido tão perfeita quanto o trânsito de uma grande cidade permite se uma motoqueira imbecil não tivesse tentado se matar usando o meu carro. Basicamente, ela vinha pelo famigerado (para não dizer ilegal) corredor e me cortou, não consegui parar a tempo e colidi com ela. Por sorte, eu estava bem devagar e consegui evitar grandes danos. Arranhou um pouco a lataria do meu carro e quebrou o apoio da moto dela. O pé dela inchou um pouco, mas pelo que ela entrou em contato depois, não foi nada demais. Espero, genuinamente que esse incidente tenha se resolvido.

Finalmente, ao chegar em casa recebi uma mensagem do meu irmão (T) que queria falar comigo e ainda tinha que lidar com os meus pais. Comecei pelo que parecia mais fácil: liguei para T. Ele é apenas três anos mais novo do que eu, mas nunca fomos muito próximos. Acho que desde que saí de casa, nunca conversamos por mais do que dez minutos. Dessa vez, falamos por quase uma hora, só interrompi porque caso contrário não conseguiria conversar com meus pais. Ele foi super compreensivo, pediu mil desculpas por nunca ter reparado no meu sofrimento e em como, apesar de tudo, eu sempre fui um exemplo para ele em todos os aspectos da vida. Que ele se espelhava muito em mim e agora ainda mais por toda essa coragem que demonstrava para agarrar a felicidade.

Já com meus pais a conversa não foi tão tranquila. Na primeira meia hora, basicamente só a minha mãe falou, ela era a coitada em toda essa história. Apesar de tudo o que eu escrevi na carta, ela disse que ainda me amava e me aceitava como seu filho. Que seria difícil se adaptar, que ela nunca imaginara ter uma filha. Que não sabia de onde eu tinha tirado isso. Que era para eu ter certeza do que eu estava fazendo, pois era meio que irreversível. Mas que estava tudo bem, a gente só precisava de mais tempo em família (ela ainda não tinha digerido o fato de que eu não passaria o Natal com ela) para aprender a lidar com essa situação que eu criara. Foi um inquérito e eu era culpada pelo hediondo crime de transformar a nossa família antes tão perfeita em uma aberração. Senti-me péssima. Chorei ao telefone. Ela impassível. Nesse momento, meu pai sempre tão calado e inexpressivo falou exatamente o que eu precisava ouvir. Querendo ou não, a carta que eu escrevi foi mais para ele do que para qualquer outra pessoa. Já esperava essa insensibilidade da minha mãe, só não queria era acreditar mesmo. Ele disse que não tinha capacidade para imaginar todo o sofrimento que passei sozinha ao longo desses trinta anos. Que ele se sentia muito culpado por sempre ter estado ausente e consequentemente não ter reparado nele. Pediu desculpas por qualquer coisa que ele tenha dito ou feito que me tivesse me magoado. Afirmou que me amava e só se importava que eu encontrasse o meu lugar no mundo onde pudesse ser plena e feliz. Pediu que agradecesse à minha esposa pela força e apoio que ela estava me dando nessa hora tão complicada. Para fechar com chave de ouro minha mãe tomou a palavra para afirmar que agora não era mais a única mulher na família, completamente ignorando a minha esposa e a esposa de T, e que ela teria que aprender a dividir todas as atenções. Fiquei puta, sem saber o que responder e exausta pelo dia que tinha tido, apenas me despedi.

No dia seguinte me ligaram para continuar com a conversa. Foi ainda pior. Minha mãe queria vir me visitar para me dar um abraço e perguntou, por insistência de meu pai, se estava tudo bem. Claro que não. De acordo com a minha vó, isso só resultaria em crises intermináveis de choro e nenhuma resolução. A outra opção é que eu fosse visitá-la sozinha, sem levar a esposa. Afinal de acordo com ela, nessas horas a família tem que se unir. Dessa vez não aguentei e bati o pé. Se era para a família se reunir, não bastava que ela, o pai, eu, o T e o A estivéssemos, a vó, a minha esposa e a esposa de T também deveriam estar presentes. Ela não gostou nem um pouco, mas pelo menos meu pai enfatizou o que eu disse e o assunto morreu por aí. Finalmente, ela perguntou algo sobre mim, como eu tinha chegado à conclusão de que era trans, como estava sendo o processo e como eu imaginava que estaria em alguns anos. Contei tudo, expliquei o que era disforia, como me sentia antes e agora depois de ter começado a transicionar. Abri meu coração. Pareceu até que ela estava entendendo até soltar novamente um “mas é bom que você tenha certeza do que está fazendo”. Pelo menos dessa vez ela estava mais resignada, menos combativa. Passamos, então a assuntos mais práticos de como eu gostaria de ser tratada, meu novo nome. Eles ficaram felizes que não troquei o radical que eles escolheram com tanto carinho. Acharam graça de o dia que eu renasci ter sido o mesmo dia em que casaram. Coincidências bizarras da vida. Perguntaram como eles deveriam lidar com a família estendida e amigos deles. Tudo estava indo muito bem, até tocarem no assunto de apoio psicológico. Perguntaram se eu estava fazendo acompanhamento (claro, né!) e se eu achava adequado que fizessem (óbvio, também!). O problema é que a primeira opção de psicóloga que veio a mente da minha mãe era a amiga dela que tinha me tratado (e estragado) anos atrás. Tive novamente que explicar o óbvio, não só que essa mulher era a definição de incompetência e falta de ética como também a última pessoa com quem deveriam se consultar. Eis uma pessoa que se eu encontrar, vão ter que me segurar forte para eu não dar um soco na cara. Espero que eles tenham entendido o recado. Depois disso nos falamos apenas brevemente na véspera de Natal apenas para desejarmos mutuamente uma noite feliz repleta de abundância e bençãos da sua divindade favorita.

O Natal, eu passei na casa da mãe emprestada da minha esposa. Ela pediu que fosse bem discreta para não estragar sem querer o evento. Afinal ela queria esperar um momento mais adequado para dar a notícia. Por outro lado, ela também me encorajou a ir como eu mesma e me ajudou a fazer uma maquiagem simples. Nada demais, mas só de esconder completamente a sombra da barba em frangalhos, já era outra pessoa. A noite foi tranquila, além dos olhares perplexos e curiosos mas sem nenhum comentário explícito, só teve um incidente engraçado. Estava na festa o enteado de nove anos da melhor amiga da minha esposa. Eu já tinha brincado brevemente com ele antes de transicionar. Não só ele não me reconheceu, como ficou atônito sem saber se eu era uma menina ou um menino. Minha esposa me reapresentou simplesmente como Gabi (sem artigo definido) e ele se referiu assim a mim pelo resto da festa, inclusive corrigindo sua madrasta quando essa posteriormente se referiu a mim pelo meu nome de registro. Crianças são muito fofas!

Com isso, basicamente só resta sair do armário na Universidade. Estou aproveitando essas semanas de férias para explorar em tempo integral o meu lado feminino. Está sendo maravilhoso. Não há nada comparável a estar livre e voar um pouquinho repleta de felicidade! Claro, as pessoas na rua ainda me olham estranho. Não um estranho ruim, mas um estranho de “que diabos é essa pessoa?”. Diria que metade das pessoas que interagem comigo acertam o meu gênero. O que não considero nada mal, afinal ainda estou numa fase um tanto quanto andrógina. Talvez a cena mais representativa seja a reação de um amigo (E) que não via há uns três meses. Estávamos na casa de um amigo comum (L) e minha intenção era aproveitar o jantar para revelar para E e sua esposa que era uma mulher trans. Os anfitriões já sabia há algum tempo. Ao entrar, E disse que custou bastante a me reconhecer e tinha achado que eu era alguma amiga aleatória de L. Acho que estou no rumo certo.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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